“TÁ CADA VEZ MAIS DOWN”
Sacolinha
Advertência: esta história faz parte do projeto “O final você já sabe!”*. É um conto e como tal é fictício e foi construído livremente baseado em fatos do cotidiano. Dessa forma, o autor não busca aqui imitar a realidade ou ser fiel a ela.
Manchete
Homem negro é espancado e morto em supermercado Carrefour em Porto Alegre
Ao menos dois seguranças brancos espancaram João Alberto Silveira Freitas até a morte. Os agressores, que trabalhavam como agentes de uma empresa de segurança, foram presos em flagrante por homicídio triplamente qualificado.
Acessado em 21.11.2020
“Preta, tô com mó vontade de comer aquele pudim que só você sabe fazer.” – Falou José Alves para sua esposa.
“Ah, não Zé, tô cansada. Agora só tenho energia pra tomar banho e cair na cama.”
“Poxa, preta, passei o dia todo trampando com o meu véio e pensando nesse pudim que só você sabe fazer. Justo você que é a mulher mais bonita do mundo.”
“Lá vem você…”
“Mas você sabe que é verdade. Mulher mais bonita que você não existe” – finalizou abraçando e beijando a esposa.
Seguiram para o supermercado. No caminho, ele ia comentando sobre o seu dia com o pai.
“Acho que se a gente continuar neste ritmo, até o meio do ano que vem vamos conseguir dar entrada no caminhão.”
Seu sonho era ter um caminhão de pequeno porte, em sociedade com o pai, para fazer entregas pela cidade. Havia muito tempo que almejava por isso, desde quando era funcionário do aeroporto Salgado Filho e via aqueles pequenos caminhões circulando, entre os aviões, carregados de caixas de tudo quanto é produto. Certa vez, manobrou um desses veículos, da pista até o terminal de cargas. E então decidiu: “Quando eu sair daqui vai ser pra ser meu próprio patrão a bordo de um caminhão desses”.
No ano seguinte, sofreu um acidente de trabalho e foi aposentado por invalidez. Após inúmeras sessões de fisioterapia, recuperou parcialmente os movimentos dos dedos da mão fraturada, bem como do fêmur e voltou a sonhar com o caminhão.
A esposa já se preparava para dividir o marido com mais uma paixão. Porque era sempre assim: ele entrava de cabeça. Foi desse jeito com o time de futebol do bairro. Por conta do acidente, ele não jogava, mas era torcedor fanático e assumia responsabilidades que iam desde alugar ônibus para levar a torcida aos jogos fora da cidade, até fazer produtos como xícaras e camisetas com o símbolo do time.
Também foi assim com um gato que ele achou miando de fome e frio em um terreno baldio. Levou para casa e desde então quase não se desgrudava do bicho.
Então, antes de chegar ao supermercado, a esposa questionou: “Futebol, gato e agora o caminhão. Será que vai sobrar um tempo pra mim?”
“Ô preta, cê sabe que nada e nem ninguém me rouba de você, né?”
“Então vamos no Parque da Redenção no domingo?”
“Mas, preta, no domingo tem o jogo do São José, e….”
“Ó lá, tá vendo? Nunca dá pra trocar o futebol por mim, agora o contrário sempre acontece.”
“Ai, preta, assim você me deixa mal.”
“Mal fico eu, passando o domingo sem o meu marido.”
“Tá bom. Prometo que vou tentar colocar alguém no meu lugar pra coordenar a torcida.”
“Não promete algo que você não vai cumprir. Sei que você tá falando isso por causa do pudim.”
“Nada a ver, preta. Você sabe o quanto eu te amo.”
Entraram na garagem do supermercado. Ao saírem do carro ouviram uma música que vinha de um veículo estacionado. A cantora, já falecida, era conhecida por muitos dali, pois nascera naquele bairro:
Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram
E o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens
José, como sempre brincalhão, agarrou na cintura da esposa e conduziu uma dança tímida, porém verdadeira. Isso respondeu à pergunta que ela tinha feito, segundos antes, pra si mesma: “Por que eu amo tanto esse homem, se ele me troca pelo futebol de domingo?”
O calor dos corpos colados, o coração dele batendo no peito dela e o hálito quente em seu ouvido, a lembrou o porquê o amava.
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz
Deu um beijo na esposa e apalpou a sua bunda.
“Para de me fazer passar vergonha, Zé. Tem gente olhando.”
Entraram no supermercado e em alguns minutos já estavam no caixa. José se afastou da esposa. Ela o viu caminhar em direção ao estacionamento junto com alguns seguranças, mas não achou estranho. Estranho foi quando estava indo para o carro e viu alguns seguranças passando apressados por ela. Ao chegar se deparou com a cena violenta, envolvendo seu esposo. Tentou intervir e foi impedida. Minutos depois se debruçou sobre o corpo do marido.
Ao fundo Elis Regina mandava o recado:
Alô alô Marciano
Aqui quem fala é da Terra
Pra variar, estamos em guerra
Você não imagina a loucura
O ser humano tá na maior fissura porque
Tá cada vez mais down in the high society